A verdade libertadora. . .
A verdade libertadora. . .
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. As sábias palavras de Cristo, descritas em João 8:32, não somente refletem a justeza da revelação cristã, como a importância da verdade como norte para o homem. Nesta declaração há uma correlação entre dois conceitos: verdade e liberdade. Ninguém pode ser realmente livre, se é incapaz de conhecer. A ignorância, a escuridão mental, as trevas da estupidez, fazem da liberdade do homem um ato irracional e destrutivo. Na prática, nem é livre, até porque não age segundo sua consciência, já que nem possui nenhuma. Complementando o raciocínio cristão, milênios depois, John Locke afirmou que só podemos ser livres, na medida em que somos racionais. Nada mais perfeito.
A capacidade de conhecer é o que racionaliza o uso da liberdade para que é bom, belo e justo. É a liberdade, dentro da justa razão, que conclama a boa escolha moral e a virtude. Ainda que o homem tenha tendências ao pecado e ao erro, a idéia mesma de conhecer a verdade o faz nunca perder a bússola que o orienta para aquilo que é certo ou errado. O mal da humanidade não é em si pecar, pois todos nós, seres imperfeitos, pecamos. O trágico da humanidade é perder a razão, a direção dos seus atos, e o próprio sentido do viver, na falta das referências transcendentais. A fé de um cristão está nisso.
Ademais, a filosofia moderna negou um atributo fático da verdade, ou da busca dela: a fé. A fé está tão ligada ao nosso cotidiano, que nenhuma credibilidade se pode dar as coisas sem ela. Os contratos, o reconhecimento público de um documento ou mesmo a confiança mútua entre as pessoas só pode existir, se houver fé. Em suma, ninguém consegue viver sem um tipo de fé em alguma coisa. Até a negação completa da fé, como os modismos relativistas que a engendram, é, de alguma forma, uma espécie de fé. A diferença entre a fé de um cristão que ama a verdade, e de um relativista que a nega, é que a suposta descrença do cético militante é uma forma de crença postiça, falaciosa, niilista. Em nome de negar a existência da verdade, previamente ele se nega a ver a realidade como ela é. É um ato de loucura, sob a aparência presunçosa de um ato racional. Um ato de ignorância, porque só pode haver conhecimento amando a verdade e tendo fé.
Por outro lado, só podemos conhecer a verdade possuindo liberdade. A capacidade de conhecer exige independência, asceticismo individual, coragem. Ninguém pode conhecer sendo coagido a algo que não crê. Nenhuma razão pode ser criada livremente se não houver a liberdade de ir até aos mais sinceros dramas de consciência, na busca da verdade. Há quem diga daqueles homens que ganharam o mundo e perderam a sua alma. Um cristão verdadeiro é destemido, precisamente por achar que a verdade vale mais do que as pressões coletivas. Deus, na sua Divina Providência, deu liberdade moral e de consciência ao homem para isso. Deu inteligência para ter o discernimento. A Bíblia diz, sabiamente, que somos a imagem e semelhança Dele. O homem pensa, cria, possui a consciência das coisas ao redor e a dimensiona conhecendo. E o Todo-Poderoso, demonstrando um completo amor pela humanidade, deu a devida liberdade para o homem escolher o certo e errado e assumir as responsabilidades pelos seus atos. Deu o direito ao homem de ser um indivíduo.
E onde está a Revelação na humanidade? Uma crença comum na Idade Média dizia que Deus havia criado dois livros: a Bíblia e o mundo. A vertente poética desta crença deduz que as coisas do mundo estão para serem conhecidas como os livros, que devem ser lidas e meditadas na consciência humana. Ainda que haja transformações aparentes no mundo, há elementos imutáveis e eternos na natureza, que retratam a unidade da criação divina. E a Revelação demonstra aquilo que está no íntimo da consciência de cada homem, ou seja, o direcionamento moral, intelectual e ético de sua liberdade. As verdades filosóficas são unas no tempo e no espaço. Se não houvesse universalidade do conhecimento, os homens seriam como o Babel bíblico, perdidos no tempo e no espaço, vítimas de suas próprias fantasias e de suas meras relações contextuais, incapazes de possuírem um idioma comum de compreensão de si mesmos e do mundo. O conhecimento humano seria arbitrário e o conjunto da experiência histórica tradicional perderia continuidade e não teria sentido. Cada mentalidade histórica possui uma característica peculiar. Todavia, seus dilemas humanos, no que tange ao conhecimento, à moral e à filosofia, e mesmo à religião, estão presentes em todos os tempos. Porque, no final das contas, a realidade é una. A Revelação se casa com a filosofia, ao afirmar a existência pressupostos absolutos em todas as épocas e realidades.
O direito medieval retrata bem isso: jus aeternam, jus naturalis et jus civilis. O “jus aeternam” é a Revelação enquanto um caráter ético imutável que está implícito na consciência do homem e que é reconhecido pelo amor à verdade das Escrituras. São os dilemas éticos que servem como orientação da consciência humana, a partir dos desígnios de Deus para os atos do homem. Ele é eterno, porque seus pressupostos são imutáveis. Eles se confundem com o próprio "jus naturalis", porque ele está na natureza das coisas e do próprio homem. O direito natural é um princípio que é compreendido pela razão, no que diz respeito ao fundamento do direito. Como a Revelação, ele também é um princípio filosófico. Só que, enquanto a Revelação é compreendida sob o prisma ético e moral interior da consciência, o direito natural é a medida como as coisas se processam naturalmente, a partir da realidade e da conduta inata humana. O homem tem atributos naturais percebidos pela razão e condicionados pela ética e moral. O direito natural se sujeita ao divino, na medida em que os atributos da natureza humana são direcionados para as virtudes morais e éticas da Revelação. E o "jus civilis", direito civil, comum, convencional, é reflexo legal e formal destes dois princípios basilares da conduta humana. Dentro dos parâmetros do direito natural e divino, a humanidade é dotada de uma dignidade intrínseca à sua existência. A dignidade humana não é mera formalidade do direito positivo, mera proteção do Estado ou um capricho da legalidade humana, mas, um imperativo que transcende os poderes terrenos, na medida em que cada homem representa uma individualidade única, insubstituível e inalienável, ordenada por algo superior. O valor da vida do homem está, salvo em alguns casos, acima da vontade de outros homens.
Se a Revelação orienta a conduta humana, ela também explica a existência e o sentido da vida humana. Aqui há vários perigos: muitos tentam buscar nos textos bíblicos uma explicação literal das coisas, como se cada versículo fosse uma espécie de legalidade formal imposta a todos, de caráter coercitivo. Ou então uma descoberta da totalidade dos mistérios do mundo, como se todo conhecimento fora do âmbito bíblico fosse dispensável. Tais interpretações são presas fáceis para fanáticos e soberbos, que se presumem serem intérpretes da vontade de divina, e se idolatram, presumindo serem a própria vontade de Deus. O fanático não é um homem apaixonado pela verdade, e sim pelas suas opiniões. Em alguns casos, ele é capaz de sacrificar a verdade que o incomoda, pela sacralidade daquilo que julga crer. Quem presume conhecer a verdade não teme os questionamentos intrínsecos à sua busca. Simplesmente os expõe. E, no entanto, alguns homens se acham os eleitos da divindade, pelo simples fato de ditarem a Bíblia de forma totalitária. Nada mais errado e absurdo. O sábio rei Salomão já dizia: stultorum infinitus est numerus (os números dos estultos são infinitos).
Alguns aspectos da realidade humana e dos mistérios da criação estão além de uma observação detalhada. Até porque os elementos lingüísticos da Bíblia tentam explicar algo que está além de nossa existência, que é a transcendência, por meio de alegorias. A Bíblia não é ciência exata, é filosofia, teologia e religião. Salvo os elementos históricos reais, a Bíblia tenta explicar a humanidade e seus destinos, como suas origens, através de uma linguagem poética, simbólica, aproximada, nunca totalmente literal, do homem e de sua ligação com a Divindade. Há de se conjecturar que a Bíblia é também um livro histórico. Como tal, se alguns de seus princípios são eternos e imutáveis, outros são filhos de seu tempo, apreciáveis dentro da realidade e do contexto particular do povo judeu. É absurdo adaptar secamente tudo o que a historicamente a Bíblia apregoa. O fundamentalismo religioso quer realocar noções bíblicas fora de uma realidade histórica, desvirtuando e corrompendo a finalidade de justeza e razão dos preceitos bíblicos. Acaba tornando a Bíblia um livro opressivo, intolerante, estático, completamente imune à realidade e à racionalidade. Ignoram a sabedoria de Eclesiastes: “todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi proscrito”.
Os seus heróis e suas histórias estão intrinsecamente ligados a uma relação entre Deus e a humanidade. Porém, essas histórias nunca são pacificas: elas se conflitam, por variados contextos e situações inimagináveis de sofrimentos e dramas humanos, com o que os protagonistas dessas histórias se deparam. Na Bíblia, encontramos o devoto Abraão, que treme diante de Jeová e o desafiante Jó, que O desafia e O interpela; o Eclesiastes que questiona a sabedoria humana e o Eclesiástico que a exalta; em contrapartida, há o erotismo adúltero de David e Betsaba e o erotismo místico de Cantares de Salomão e a Rainha de Sabá e a famosa Sabedoria salomônica, apesar das mulheres; lamentações pela queda de Jerusalém, guerras, patriotismo, apelo à paz e às armas, e punição divina pelas iniqüidades de Israel. Shemá Israel, Ouve ó Israel, já diziam os profetas, para que não esquecessem os legados da Lei e da justiça. E a figura de Cristo, como o clímax deste romance entre Deus e o homem, é o divisor das águas entre épocas e civilizações, entre a mentalidade do passado e do futuro e da eternidade da Palavra Divina por todos os tempos, Saecula Saeculorum. E um Evangelho separa o Livro Sagrado e a história. . .
E por falar em Cristo, raramente uma história apaixonou tanto a humanidade como os passos do Messias. Há um elemento marcante em Jesus que é o amor pela verdade, pela beleza dos atos, pelo pensamento da virtude. E sua história é um misto de ternura e tragédia, na figura de um homem manso e enérgico, sábio e humilde, nascido do ventre de uma virgem e que, conforme as Escrituras, viveu a agonia do Getsêmani, o suplício do Calvário, morreu pelos pecados da humanidade e ressuscitou, provando seu caráter divino. Na verdade, a idéia mesma do sacrifício de Cristo é o grau de amor que Deus tem pela humanidade pecadora, sofrida, ao doar seu filho, pelos erros do homem. É o Deus que se sacrifica e sofre como e pelo homem. É a prova do amor divino que serve de exemplo a todos os homens.
Cristo apaixona a todo aquele que ama, de alguma forma, a verdade. Ainda que haja aqueles homens de pouca fé, raramente alguém é indiferente à Sua Imagem. As forças de seus preceitos são firmes, determinados. A Bíblia chega a ser impiedosa, seca, direta, nos seus ditames. Não poupa comezinhos da justiça e da equidade. É implacável na crítica aos perversos. Todavia, é piedosa e amorosa com os honestos, os decentes e os pecadores necessitados e penitentes. Da mesma forma que a verdade e a liberdade andam juntas, a justiça e a misericórdia são atributos reais do verdadeiro justo. Daí a condição primaz de amar o pecador, ainda que odiar o pecado. É o princípio de que a justiça deve dar espaço ao perdão e só muito raramente a punição. O Natal lembra a história deste grande homem, que falou grandes verdades que libertam: a busca incessante da compaixão ao próximo, do amor ao conhecimento, da integridade do espírito, do sentimento e da razão sobre os atos humanos. Milhões de famílias refletem sobre seus atos, ao comemorarem essa data. Cada Natal é o despertar de uma criança no ventre de uma mãe, um dia de iluminação que serve para o que fazemos e o que vamos fazer. E cada pessoa nasce de novo, no significado espiritual do nascimento de Cristo.
Cristo também significa o nascimento de uma grandiosa civilização, a Cristandade. Há peculiaridades de nosso cotidiano que são produtos da fé e valores cristãos. A formação familiar, a moral, a ética, o direito e a filosofia do ocidente têm um grande débito com o Cristianismo. As etiquetas amorosas, na idéia sublime do amor enquanto elemento espiritual, são tradições cristãs desenvolvidas largamente na Idade Média. A equivalência no plano moral entre homens e mulheres também é outro valor herdado da cultura cristã. A mulher não é um elemento secundário, antes, parte importante da família, digna de ser protegida e amada pelo seu par. Os valores da dignidade humana, a defesa dos fracos contra os fortes e até a formação das associações de caridade, hospitais, universidades e os conceitos de institucionalidade política e de liberdade individual, são devidos ao cristianismo. Isto porque é apenas uma breve exposição das contribuições cristãs ao mundo, no âmbito de um processo civilizador. O seu maior legado é de uma fé religiosa, que transforma o homem interiormente e o coloca num plano de valor ímpar, exclusivo, já que a vida é o único bem precioso que o homem reconhece sua existência. Já dizia o Mestre Divino: Vós sois o sal da terra! A vida é tão importante na fé cristã, que não se limita à existência deste mundo. Ela se estende a um reino de outro mundo, para aqueles que, no sentimento legitimo da fé e da verdade, esperam, com as provas das coisas que não se vêem. . .é neste sentido da esperança dado aos céus, que o Natal renova todos os corações em Jesus Cristo. Assim seja!
Leonardo Bruno / Conde Loppeux
20 de dezembro de 2006
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