Equívocos da modernidade: quem tem medo da Idade Média?

Equívocos da modernidade: quem tem medo da Idade Média?

Equívocos da modernidade: quem tem medo da Idade Média?

26/03/2021

Por mais distintos que sejam seus princípios, por mais que suas origens sejam também díspares, curiosamente há entre os protestantes, os materialistas e até mesmo entre os espiritas, uma revolta  que os une num verdadeiro senso comum. Todos eles se alimentam de um desprezo exacerbado contra o Catolicismo. A Idade Média, por assim dizer, é rotulada como a "idade das trevas", a escuridão de mil anos. Quando a Igreja Católica participava ativamente da sociedade européia, havia o domínio estéril da religião contra o método científico e a liberdade de pensamento. O Renascimento libertou a humanidade das amarras do catolicismo malvado e opressor, para as maravilhas da cultura clássica pagã. A Reforma Protestante instaurou a liberdade religiosa contra o dogmatismo institucional de Roma. E o Iluminismo nos brindou com a ciência, a iluminação e o progresso da humanidade. Naturalmente que tudo isso é lenda!

Comecemos com a Reforma. Um aspecto do imaginário protestante é a total fragmentação, não somente teológica, como também institucional e histórica do Cristianismo. Dentro do princípio da "sola scriptura", qualquer doutrina pode ser válida, por mais destoada que nos aparente ser de qualquer coerência intelectual. Basta ter a visão legalista da bíblia para que tal teologia tenha força dogmática entre a comunidade cristã. Na prática, o protestante não segue dogmas, escolhe seus dogmas, conforme sua subjetividade e os caprichos de sua seita. A bíblia, fora de seu contexto e de sua historicidade, pode justificar, como um código penal, as piores distorções teológicas. Se o protestantismo admite uma margem extrema de liberdade teológica e institucional, este princípio, no entanto, não se aplica ao catolicismo.  Os protestantes podem tolerar inúmeras dissidências internas do Cristianismo. Mas o catolicismo é uma espécie de inimigo número um, uma Igreja cuja diretriz teológica é negada.

O protestantismo representa a primeira grande ruptura radical com a Tradição Cristã no ocidente. Não é espantoso que a Idade Média, o esplendor do Cristianismo nas instituições e na filosofia, seja literalmente riscada do mapa, como se quase 1500 anos de história não valessem nada para o desenvolvimento da fé cristã? Vários livros de temática protestante forjam o mito de uma Igreja Católica corrompida ou de uma Igreja criada pelo Imperador Constantino, como uma forma de ilegitimar um milênio de história católica. É como se tudo que fosse produzido no mundo medieval não passasse de um mero disparate do Império Romano e do paganismo.  Em suma, as vibrantes discussões da filosofia agostiniana e neoplatônica, da Escolástica, as catedrais e as manifestações extremas de caridade, sacrifício e fé são jogadas na lata do lixo da história!

Se por um lado, o protestantismo critica uma certa Igreja "romana", produto do pragmatismo imperial, contraditoriamente ressuscita a autoridade de César como Chefe da Igreja. Ao destruir a independência da Igreja Católica e a autoridade papal, os protestantes elevaram o Estado como Igreja e o rei como sacerdote. O poder temporal suplanta o poder espiritual. Ou pior, o Estado personifica, ao mesmo tempo, o poder espiritual e secular.  Fala-se da Inquisição Católica e da Espanha fanática como símbolo de intolerância. Porém, ignora-se os massacres de católicos na Inglaterra e demais países da Europa, obrigados a renunciar a sua fé originária, para aderir às variadas heresias de seus príncipes. Oculta-se a violência da inquisição protestante, muito mais arbitrária do que a inquisição católica. O protestantismo foi a vitória completa do Império sobre a Igreja. É o gibelino em sua escala mais extrema.

O Deus protestante não é o lógos detectado por certa visão escolástica e citado no Evangelho pelo apóstolo São João, munido de vontade e inteligência criadora do universo. É tão somente um ser voluntarista, preocupado mais com sua onipotência do que a manifestação do seu intelecto. A  Graça arbitrária e a fé passionalista em detrimento da razão, das obras e dos bons atos, criam uma disparidade intransponível entre Deus e o gênero humano. A graça divina aqui não é totalmente generosa, mas só pertence a alguns "eleitos". Pra que pregar o Evangelho a toda criatura, se só alguns serão salvos? Ou melhor, Deus age com a humanidade como se fosse um sorteio da Mega-Sena. Alguns serão escolhidos e outros perdidos. Deus não precisa justificar esses atos. Na verdade, ninguém precisa entendê-los. O protestante se apropriou de Deus como um mágico da lâmpada de Aladim. Não é por acaso que a igreja protestante surge como uma instituição nacional. A antiga universalidade da Igreja cristã é anulada.

Divulga-se o "resgate" de um suposto "cristianismo verdadeiro", extraído das hostes primitivas e que foi perdido na Igreja Católica. É como se os protestantes, na sua peculiar interpretação, encarnassem um cristianismo abstrato, fora de qualquer linha histórica, produto cabal apenas de seu idealismo teológico. O critério histórico aqui é seletivo. Quando a história não é falsificada, é remodelada, como se a memória não fosse um lembrete de um passado factualmente existente, porém, uma justificativa para um futuro hipotético. O problema é saber qual cristianismo é "verdadeiro", no emaranhado  difuso de igrejas e teologias confusas e prolixas. A ortodoxia não é o forte da Reforma.

Não se pode negar: o protestante é o primeiro grande "progressista" da Europa. É muito comum certa propaganda vender a idéia de que as nações "reformadas" representam a prosperidade econômica capitalista e a democracia, em contradição com a cultura católica fechada, economicamente atrasada e politicamente autoritária. Contudo, tais argumentos omitem algumas questões que não dependeram apenas das raízes religiosas dos ditos países. Há países protestantes prósperos e democráticos como os Estados Unidos, como houve países protestantes atrasados e historicamente divididos, como a Alemanha do início do século XIX, com seus vários feudos, ou a Escócia do século XVIII. Os precursores do capitalismo moderno não foram protestantes, mas católicos, em particular, vindos de nações como Portugal e Espanha, além das cidades italianas do século XIV. A Espanha do século XVI era o berço cultural da Europa, com Salamanca à frente. As simplificações servem para justificar certas tendências. Todavia, comprometem a verdade histórica.

O Renascimento e o Iluminismo são outros fabricadores de mitos. Os renascentistas foram os primeiros a difundir a tola mitologia da "Idade das Trevas". Deslumbrados com a redescoberta dos textos gregos e latinos, quiseram a todo custo abandonar o Deus cristão pelo Deus da natureza. Ou mais, caíram na esparrela de idealizarem um mundo clássico que só existia na cabeça deles. Certa filosofia da renascença cai num ralo ceticismo e panteísmo. Giordano Bruno, esotérico elevado a "cientista" de ocasião pelos inimigos da Igreja e queimado pela inquisição italiana, pregava uma ordem  materialista da realidade, onde Deus se confundia com a própria Criação. Não é de se assustar. O materialismo se tornou a nova religião da atualidade. Ele ganhou auras de "ciência".

Grande parte dos ateus e materialistas é panteísta. Eles acreditam que as propriedades da matéria são bastante racionais para organizar as leis naturais do universo. Resta saber como o acaso, o nada e o elemento impessoal da natureza podem ser mais inteligentes do que um ser pessoal e racional, para criar tudo que existe. Partindo dessa lógica, é possível que um vegetal, um punhado de terra ou um inseto seja intelectualmente superior ao homem. O ser humano, com seu intelecto, vontade e  consciência, não significa nada para essa  tirânica divinidade chamada Gaia. Será apenas um composto orgânico que se diluirá pela morte, consumido pela deusa canibal. Que grande sadismo da natureza não nos transformar numa pedra! Ao menos, transforma a humanidade em esterco!

A palavra "razão" foi outro instrumento de propaganda dos difamadores. A "era iluminista" substituiria a "era da superstição" e da "ignorância'. Será? Uma sólida crença se difundiu na mentalidade moderna. A de que antes do Iluminismo, as pessoas viviam na obscuridade da razão. Talvez ninguém pensasse, ninguém fizesse conexões lógicas com a realidade. Não havia lógicos e retóricos? Não havia artistas, cientistas e sábios? Os homens que inventaram a escola e a universidade medieval eram tolos e sem luzes? O Trivium e o Quadrívium eram meras ilusões discursivas? Os patrísticos e escolásticos eram tão imbecis assim? Voltaire, escritor notável e patife, condenava a Igreja Católica como a "infame". Ainda dizia que a metafísica era uma "quimera", tamanha sua ignorância presunçosa. Rousseau criticava o Cristianismo, e em particular, o catolicismo, por ter destruído a unidade do poder espiritual e temporal, comum no mundo pagão. O Estado deveria ter uma religião civil, ser político e eclesiástico ao mesmo tempo, para manter a coesão social e a virtude pública. Em outras palavras, a religião civil implicaria numa idolatria da coletividade e do Estado, com a famigerada deusa "vontade geral". Quando tal ideologia foi aplicada na Revolução Francesa, milhares de cabeças foram degoladas e se implantou uma ditadura monstruosamente tirânica até para os padrões do Antigo Regime. Estabeleceu-se na França iluminista um arquétipo em miniatura do que seria futuramente o totalitarismo nazista e soviético. Liberté, egalité et fraternité ou la mort! A liberdade, igualdade e fraternidade foram para o buraco. Sobrou tão somente a morte. E quantas mortes!

Por falar em "idade das trevas", eu estava num sebo, quando me deparei com um livro sobre a inquisição. Tinha uma temática espírita. Falava sobre uma Idade Média sombria, fanatizada e perversa. E conjecturava mais bobagens fantasiosas sobre o Tribunal do Santo Ofício. Tolices psicografadas, lembremos. Sabe-se lá que bases históricas existem nesses "espíritos" que baixam em cabeças supersticiosas não muito instruídas! É possível que tenha baixado muito espírito de porco para escrever tais sandices!

Tive a oportunidade de folhear uma obra espírita onde se tentava reabilitar os cátaros, uma seita maniqueísta que pregava a abstinência, o sacrifício e até o suicídio. Não me espanto. O espiritismo é uma espécie light de catarismo, onde a matéria é vista como má. Assustadora foi minha impressão, quando dei uma olhada na parte do "Livro dos Espíritos", quando se fala de Deus: "causa primária" e "incriada", criadora de todas as coisas. Não será supreendente que o Catolicismo medieval seja tão mau e obscurantista a ponto de plagiarem descaradamente São Tomás de Aquino e a Summula Contra Gentiles?

O espiritismo propaga a idéia de que é religião, doutrina, ciência e revelação. E mescla cristianismo com elementos totalmente estranhos à tradição cristã, como o reencarnacionismo e o contato com os espíritos dos mortos. Apesar do aparente jargão espiritualista, o espiritismo é uma grosseira doutrina materialista. No Cristianismo, a  religião e a Revelação são atributos exclusivos da manifestação de Deus. São parte do seu Mistério. Não pertencem à compreensão do homem. O máximo que a teologia consegue buscar são os aspectos racionais e analógicos dessa mensagem e da relação salvífica de Deus. Quando uma doutrina se propõe a mensurar "cientificamente" o que pertence ao transcendente, ao metafísico e ao sobrenatural, já não se tem aí uma religião, mas um esoterismo de baixo nível, travestido de linguagem pseudo-científica. Na verdade, o espiritismo nega o sobrenatural. Ele "naturaliza" e imanentiza Deus e o espírito.


Há desvios ainda piores nessa doutrina. O espiritismo nega a Graça divina, o pecado original e a missão de Jesus Cristo de redimir a humanidade, como Deus encarnado. É uma mistura soberba de gnosticismo e pelagianismo. O espírita não se vê como um pecador que necessita sempre buscar a Graça divina. Ele acha que pode buscar sua própria salvação, através de uma ordem determinista supostamente evolutiva no universo, sem qualquer intervenção direta de Deus.

A lei do carma pregada pelos espíritas é uma das mais abjetas e injustas que se pode consagrar. Ainda que o espiritismo se afirme pregadora de um monoteísmo, na prática, porém, acaba levando a uma forma disfarçada de panteísmo. Há uma despersonalização da existência humana. O homem não tem uma vida transitória que o individualiza como ser  único, mas sim várias personalidades e identidades, como se o espírito se fundisse num "todo" abstrato divino. A responsabilidade individual  é negada. Uma pessoa pode pagar por vidas de um passado que já não faz parte de sua realidade, cuja consciência não lembra. A lei cármica, na prática, dilui o indivíduo no universo.

A popularidade do espiritismo é explicada pela própria formação de seus acólitos. Gente da classe média, tecnocratas, burocratas, médicos, cujas cabeças foram domesticadas para o cientificismo e o secularismo nas faculdades. Gente muitas vezes ligada à maçonaria e ao discurso idolátrico do progresso. Na verdade, o espiritismo promete um progresso e uma redenção, embora sem o sacrifício de Cristo, relegado a apenas um "espírito superior". A doutrina de Kardec é totalmente cientificista, no sentido claro de absorver todas as tendências materialistas do século XIX. O evolucionismo, abstraído do darwinismo, o pseudo-racionalismo, como a proposição de se declarar como "ciência", revelam os cacoetes mentais de uma época cada vez mais distante de Deus.

Se por um lado, o espiritismo é pseudo-ciência, por outro, usurpa os símbolos da fé e da teologia católica para parasitá-las, distorcê-las, inverter-lhes o sentido. Isso a torna uma doutrina intelectualmente desonesta e perigosa. Em um país como o Brasil, onde a ortodoxia católica sempre foi frágil, o discurso espírita seduz muita gente. Ele concilia as superstições cientificistas da educação formal superior com os velhos valores do misticismo cristão. Inclusive, aproveita as crendices do chamado baixo-espiritismo africano, impregnados no catolicismo brasileiro. Os espíritas oferecem uma sofisticada macumbaria européia, palatável para as classes ditas "instruídas". Chico Xavier virou uma espécie de "santo" espírita. Outros viram curandeiros ou confessores. E a caridade é explorada para uma doutrina má, uma ressureição cátara disfarçada de Cristianismo. Santo Agostinho dizia que a busca da verdade é o amor a Deus.  Não há amor sem verdade. O espiritismo degenera a caridade e o amor. É o amor sem verdade. É um amor sem Deus.


Grande parte dessas tendências religiosas e intelectuais, ainda que declare rejeitar todos os elementos da Idade Média, na prática, é produto de sua degenerescência, de seu outono, de sua crise. A extrema hostilidade com o mundo medieval é uma forma de negar as próprias origens dessa negação. A lembrança da Idade Média, na prática, denuncia as fraquezas intelectuais dos dogmas da modernidade. Modernidade esta fundamentada no gnosticismo, no ceticismo e no subjetivismo romântico, que nutre um intenso ódio pela realidade e pela verdade. Uma parte ressentida dessa modernidade é filha das heresias medievais. E a outra parte, paradoxalmente, é filha da ortodoxia que se perdeu, em particular, do nominalismo e do ocamismo. O mundo medieval não é odiado por ser obscurantista, mas por ser cristão, por ser a origem da civilização ocidental e da própria sociedade moderna. Civilização esta que a modernidade faz questão de odiar. Ou seja, a civilização que faz a ligação do homem com o transcendente, Deus. 


Leonardo Bruno / Conde Loppeux
20 de dezembro de 2006

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